26 de fev. de 2010

Desconsideração da Personalidade Jurídica

Fabiana Batista / Stephanos Demetriou SN
A pessoa jurídica possui autonomia e personalidade jurídica distinta da de seus sócios. O Código Civil de 1916 dispunha expressamente no art. 20: "As pessoas jurídicas tem existência distinta da dos seus membros". O Código Civil, em vigor desde 2003, manteve a orientação. No art. 37, há previsão de que os atos praticados pelos administradores, no exercício da gerência, obrigam a pessoa jurídica. O art. 45, por sua vez, dispõe sobre a existência legal da pessoa jurídica. No art. 985, há menção sobre a aquisição da personalidade jurídica, distinta da pessoa física dos seus sócios. Em suma, a pessoa jurídica não tem seus bens confundidos com o patrimônio particular dos seus sócios. A aquisição da personalidade jurídica tem como marco referencial o registro dos atos constitutivos da sociedade na junta comercial. Nessa esteira de raciocínio, vaticina a doutrina: "Quando uma sociedade, associação ou fundação registra seus atos constitutivos (contrato ou estatuto social) no órgão competente, surge a pessoa jurídica, isto é, um novo sujeito de direito autônomo em relação às pessoas que estão a ela vinculadas, sejam os seus fornecedores de capital (sócios ou acionistas), sejam seus gestores (administradores) ou mesmo seu corpo de trabalhadores". Mister sinalar que uma das condições para a existência de autonomia da pessoa jurídica é justamente a existência de patrimônio próprio, compreendido como as coisas, créditos e débitos – relações jurídicas de conteúdo econômico. Para Orlando Gomes, patrimônio seria a "representação econômica da pessoa". Pois bem. Visando a impedir que “a utilização indevida do fim societário se prestasse como instrumento de fraude de terceiros” , surgiu o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, tendo como precedente de maior repercussão o pronunciamento da Corte de Justiça da Inglaterra, em 1897, a respeito do célebre caso Salomon vs. Salomon & Co. Entretanto, a experiência jurídica norte-americana remonta ao precursor caso Bank of United States vs. Deveaux, no ano de 1809, que somada à influente decisão inglesa, criou a disregard of legal personality, or legal entity, a fim de, como dito alhures, corrigir abusos. "Constatado o fato de que a personalidade jurídica das sociedades servia a pessoas inescrupulosas que praticassem em benefício próprio abuso de direito ou atos fraudulentos por intermédio das pessoas jurídicas, que revestem as sociedades, os tribunais começaram então a desconhecer a pessoa jurídica para responsabilizar os praticantes de tais atos.” No direito brasileiro a doutrina foi esposada por Rubens Requião. "...ora diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos e abusivos." Posteriormente, a matéria foi positivada. Em 1990, pelo Código de Defesa do Consumidor no art. 28 , em 1994, na Lei Antitruste, Lei 8884/94, art. 18 ; repetindo o dispositivo do CDC, no art. 4º da Lei 9605/98, que dispõe sobre sanções (administrativas e penais) aplicadas às condutas lesivas ao meio ambiente e, finalmente, no novo Código Civil, art. 50 . Embora não trate diretamente da questão, o Código Tributário Nacional, já em 1966, estabeleceu a responsabilidade pessoal daquele que praticar excesso de poder ou infração legal, na administração da empresa, no art. 135 , obrigando ao pagamento do imposto devido o seu patrimônio pessoal. Nelson Nery Júnior ensina, com maestria, que a desconsideração da pessoa jurídica (disregard of legal personality, or legal entity) consiste: "...na possibilidade de se ignorar a personalidade jurídica autônoma da entidade moral sempre que esta venha a ser utilizada para fins fraudulentos ou diversos daqueles para os quais foi constituída, permitindo que o credor de obrigação assumida pela pessoa jurídica alcance o patrimônio particular de seus sócios ou administradores para a satisfação de seu crédito". Ao contrário do instituto da despersonificação, que aniquila a existência da pessoa jurídica, com o cancelamento dos atos constitutivos perante o registro, a chamada desconsideração da pessoa jurídica inversa visa ao afastamento temporário da sua personalidade, permitindo, aos credores, tão-somente, satisfazerem os seus direitos de crédito junto ao patrimônio pessoal do sócio ou administrador responsável pelo ato abusivo. "Não se nega, com sua aplicação, a autonomia de personalidade jurídica da sociedade; ao revés, reafirma-se o princípio. Somente não se admite de modo absoluto e inflexível, como forma de abrigar a fraude e o abuso de direito. Não se nulifica a personalidade a qual apenas será episodicamente desconsiderada, isto é, no caso sub judice tão-somente, permanecendo, destarte, válida e eficaz em relação a outros negócios da sociedade." Ainda, segundo Judith Martins-Costa: “A pessoa jurídica como realidade institucional, à semelhança da pessoa natural, acabou por ser transformada em meio de enriquecimento ilícito por alguns indivíduos que a instrumentalizam em benefício de terceiros. (...) mais do que simplesmente interpretar, será necessário criar uma série de enunciados conjugados e complexos para que o julgador estabeleça quais são os fatos necessários para caracterizar o abuso de personalidade e, caso configurado, quais os efeitos que atingirão os bens dos sócios ou administradores da pessoa jurídica.” A teoria da desconsideração inversa permite que o juiz não mais leve em consideração os efeitos da personificação e da autonomia jurídica da sociedade, para atingir e vincular a responsabilidade dos sócios, com o intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos de direito cometidos por meio da personalidade jurídica, que causem prejuízos ou danos a terceiros. Evidentemente, este instituto reveste-se de mecanismo excepcional dentro do sistema jurídico. Trata-se da superação da separação existente entre o patrimônio da sociedade e o patrimônio dos sócios. Na desconsideração inversa, portanto, existe a busca da responsabilidade da sociedade perante ato praticado pelo sócio, coibindo, desta forma o desvio de bens e invalidando uma postura incompatível com os objetivos sociais da pessoa jurídica. Alguns pressupostos para a desconsideração da pessoa jurídica estão consolidados pela doutrina e jurisprudência, que vinculado ao não cumprimento da obrigação assumida, ensejam a aplicação do instituto, são eles: o abuso dos administradores da empresa, caracterizado pelo desvio da finalidade das cláusulas estabelecidas no contrato social ou nos atos constitutivos da empresa e quando houver uma provocada pela confusão patrimonial, ainda que mantida a atividade prevista, estatutária ou contratualmente. Por desvio de finalidade entende-se: "A identificação do desvio de finalidade nas atividades da pessoa jurídica deve partir da constatação da efetiva desenvoltura com que a pessoa jurídica produz a circulação de serviços ou de mercadorias por atividade lícita, cumprindo ou não o seu papel social, nos termos dos traços de sua personalidade jurídica. Se a pessoa jurídica se põe a praticar atos ilícitos ou incompatíveis com sua atividade autorizada, bem como se com sua atividade favorece o enriquecimento de seus sócios e sua derrocada administrativa e econômica, dá-se ocasião de o sistema de direito desconsiderar sua personalidade e alcançar o patrimônio das pessoas que se ocultam por detrás de sua existência jurídica.” Já sobre confusão patrimonial: “Também é aplicada a desconsideração nos casos em que houver confusão entre o patrimônio dos sócios e da pessoa jurídica. Essa situação decorre da não separação do patrimônio do sócio e da pessoa jurídica por conveniência da entidade moral. Neste caso, o sócio responde com seu patrimônio para evitar prejuízos aos credores, ressalvada a impenhorabilidade do bem de família e os limites do patrimônio da família." A doutrina acabou desenvolvendo duas teorias explicativas e classificatórias a respeito da matéria, corroborada pelo STJ , que são a Teoria Maior e a Teoria Menor. A Teoria maior possui aceitação mais difundida entre os doutrinadores, sendo, inclusive a teoria adotada pelo Código Civil vigente. Condicionasse à ocorrência de fraude ou abuso de direito, além do descumprimento da obrigação. “...diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.” Por outro lado, na Teoria menor é suficiente que seja demonstrado o descumprimento da obrigação pela empresa ou sociedade para que ocorra a desconsideração, esta foi a teoria adotada pelo Código de Defesa do Consumidor e pelos Tribunais Trabalhistas. A nosso ver, acertadamente, o Código de Defesa do Consumidor e a jurisprudência dispensam a demonstração da fraude no caso concreto para desconsiderar a pessoa jurídica, tendo em conta principalmente o desequilíbrio da relação jurídica existente nessas searas do Direito, prevalecendo o caráter objetivo da Teoria Menor. Em ambas há uma desigualdade entre as partes litigantes. Na relação protegida no Código de Defesa do Consumidor, temos de um lado a pessoa jurídica e do outro o consumidor, presumidamente vulnerável diante de qualquer conglomerado econômico. Enquanto que no Direito do Trabalho, novamente em um dos pólos, a empresa ou empregador e de outro o empregado, sujeito subordinado e presumidamente hipossuficiente. Cumpre salientar que a desconsideração da pessoa jurídica é uma sanção de responsabilidade civil que não atinge todo e qualquer sócio. Assim, nos termos do enunciado 07 da 1ª Jornada de Direito Civil, promovida pelo CJF, na esteira dos Projetos de Lei 3401/08 e 4298/08, concluiu-se que a desconsideração, a ser formulada em requerimento específico, respeitando o nexo de causalidade, deverá atingir o patrimônio do sócio ou administrador que cometeu o ato abusivo ou do que dele se beneficiou. Outrossim, vários enunciados foram formulados nas jornadas subsequentes, preconizando que nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50 (enunciado 146). Cabe destacar, também, os enunciados 281, 282, 283, 284 e 285, que estabeleceram parâmetros para a aplicação do instituto . A teoria da desconsideração inversa é matéria relativamente nova na doutrina e jurisprudência brasileira, com maior incidência, embora não exclusivamente, nas relações de Direito de Família. A respeito da matéria, colheu-se o seguinte julgado do TJ/RS. "APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS de terceiro. LOCAÇÃO.DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. DEMONSTRADO NOS AUTOS, DE ACORDO COM A CERTIDÃO DO OFICIAL DE JUSTIÇA, QUE foi usado o nome da pessoa jurídica para esconder e acobertar a existência de bens pessoais de seus sócios aparentes ou não-aparentes. PENHORA. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME” Rolf Madaleno, pioneiro na introdução da matéria, explica. "É ampla e produtiva a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito de Família, principalmente, frente à diuturna constatação do cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade mercantil nas demandas conjugais. Sob o manto da personalidade jurídica verificam-se constantes fraudes à partilha patrimonial, no casamento e na união estável, assim como sob o véu societário oculta-se o empresário alimentante que guarda esta obrigação com seus filhos, com seu cônjuge ou companheiro, cujo credor não reúne recursos para prover sua subsistência pessoal. Em singular parecer publicado na Revista de Processo, Thereza Alvim acresce que a teoria da desconsideração pode ser aplicada quando houver utilização abusiva da pessoa jurídica, com o intuito de fugir à incidência da lei ou de obrigações contratuais. O direito alimentar decorre de lei, ou de contrato, mas figura certamente, dentre a mais importante das obrigações". Dessa maneira, constata-se que na desconsideração inversa, em suma, acontece o contrário, o juiz não afasta a pessoa jurídica, ao revés, verificando que o sócio se valeu da pessoa para ocultar bens, atinge o patrimônio desta para alcançar o agente causador do dano. Bibliografia Consultada ALMEIDA, Amador Paes. Execução de Bens dos Sócios. São Paulo: Saraiva, 2003. BANDEIRA, Gustavo. A Relatividade da Pessoa Jurídica. Niterói: Impetus, 2004. BRUSCHI, Gilberto Gomes. Aspectos Processuais da Personalidade Jurídica. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. CAHALI, Yussef Said. Fraude Contra Credores. 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